quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Sinhá Olímpia


Por Fernando GABEIRA
“Dona Olímpia, ao perceber, nas primeiras décadas de sua vida, que não ia mesmo se casar, caiu no mundo. Teve forças para ignorar a pressão da sociedade que a envolvia, mas resolveu ver de perto. Roupa? Era simples. Bastava inventar, usando um vestido sobre o outro. Horário? Para que, se o frio e o escuro lhe indicavam a hora de dormir e a ligeira pontada no estômago lembrava que tinha fome?
Passou a andar com um cajado na mão, o rosto muito pintado e o chapéu de uma antepassada. A cidade é feita de becos, ruelas e ladeiras. Ela subia e descia, chegando às vezes lá no alto, na Igreja de Santa Ifigênia. Apesar do cajado, do olhar em fogo, ela não pregava nada, nem falava em melhorar a vida na terra. E a ladeira é algo estranho, que desafia mesmo os seres chamados normais. Sim, porque a cabeça chega em cima muito antes das pernas, de forma que cada ladeira é um mergulho no inconsciente, um deliberado abandono do corpo, condenado a repetir mecanicamente o mesmo gesto.
Ela sabia que a Igreja de Santa Ifigênia tinha sido construída pelos negros que traziam ouro escondido em seu cabelo. Quando voltavam do trabalho nas minas, lavavam a cabeça para que o metal se depositasse na pia. Olímpia achava natural que os negros construíssem uma igreja católica para eles. Todo mundo era católico. É natural que acumulassem ouro. Ela mesma estava juntando umas moedas embaixo do colchão e vivia tocada pela esperança de um tesouro.
Às vezes era colhida por um zombeteiro grito de criança no meio da ladeira. Olhava para trás e percebia que estavam rindo dela. Jamais revidou grosseria. Na realidade, achava indigno para uma neta do Marquês do Paraná. Sua vida era um mito em progresso e havia trechos verdadeiros que, de forma nenhuma, podiam caber nele.
Quase sempre era convidada por um grupo de estudantes para beber cachaça com limão, nas noites bravas de julho, quando o frio entrava nos ossos, a bruma envolvia tudo e a água da chuva escorria pelas calhas. Numa dessas rodas de cachaça, ela se embriagou, sentou-se no meio da praça central e disse tudo o que pensava da cidade. Foi um escândalo. Sob a estátua de um herói da Independência, ela lavou a roupa suja de Ouro Preto, ao ara livre, na garoa de julho. Dizem que revelou coisas tão espantosas que os sacristãos cobriram os santos de roxo e as beatas subiam e desciam ladeira, rezando o terço: Pai nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome...
No dia seguinte, Olímpia era internada no Hospital de Barbacena. A cidade não podia suportar sua consciência. Temia-se pelos casamentos, pelas reputações e o próprio curso da política municipal poderia ser afetado.”

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