Por Fernando GABEIRA
“Dona Olímpia, ao perceber, nas primeiras décadas de sua vida, que não ia mesmo se casar, caiu no mundo. Teve forças para ignorar a pressão da sociedade que a envolvia, mas resolveu ver de perto. Roupa? Era simples. Bastava inventar, usando um vestido sobre o outro. Horário? Para que, se o frio e o escuro lhe indicavam a hora de dormir e a ligeira pontada no estômago lembrava que tinha fome?Passou a andar com um cajado na mão, o rosto muito pintado e o chapéu de uma antepassada. A cidade é feita de becos, ruelas e ladeiras. Ela subia e descia, chegando às vezes lá no alto, na Igreja de Santa Ifigênia. Apesar do cajado, do olhar em fogo, ela não pregava nada, nem falava em melhorar a vida na terra. E a ladeira é algo estranho, que desafia mesmo os seres chamados normais. Sim, porque a cabeça chega em cima muito antes das pernas, de forma que cada ladeira é um mergulho no inconsciente, um deliberado abandono do corpo, condenado a repetir mecanicamente o mesmo gesto.
Ela sabia que a Igreja de Santa Ifigênia tinha sido construída pelos negros que traziam ouro escondido em seu cabelo. Quando voltavam do trabalho nas minas, lavavam a cabeça para que o metal se depositasse na pia. Olímpia achava natural que os negros construíssem uma igreja católica para eles. Todo mundo era católico. É natural que acumulassem ouro. Ela mesma estava juntando umas moedas embaixo do colchão e vivia tocada pela esperança de um tesouro.
Às vezes era colhida por um zombeteiro grito de criança no meio da ladeira. Olhava para trás e percebia que estavam rindo dela. Jamais revidou grosseria. Na realidade, achava indigno para uma neta do Marquês do Paraná. Sua vida era um mito em progresso e havia trechos verdadeiros que, de forma nenhuma, podiam caber nele.
Quase sempre era convidada por um grupo de estudantes para beber cachaça com limão, nas noites bravas de julho, quando o frio entrava nos ossos, a bruma envolvia tudo e a água da chuva escorria pelas calhas. Numa dessas rodas de cachaça, ela se embriagou, sentou-se no meio da praça central e disse tudo o que pensava da cidade. Foi um escândalo. Sob a estátua de um herói da Independência, ela lavou a roupa suja de Ouro Preto, ao ara livre, na garoa de julho. Dizem que revelou coisas tão espantosas que os sacristãos cobriram os santos de roxo e as beatas subiam e desciam ladeira, rezando o terço: Pai nosso que estais no céu, santificado seja vosso nome...
No dia seguinte, Olímpia era internada no Hospital de Barbacena. A cidade não podia suportar sua consciência. Temia-se pelos casamentos, pelas reputações e o próprio curso da política municipal poderia ser afetado.”
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